sexta-feira, 22 de abril de 2011

Não tenho nem título para um assunto desses.

Desde a semana passada, nas minhas andanças pelos textos do processor Carlos Monteiro sobre a questão dos alimentos ultraprocessados, descobri um texto em seu blog que me deixou, no mínimo, estarrecida. A situação era tão absurda, que eu nem quis comentar naquele momento. Preferi dedicar um momento só a isso.
Como eu não sou uma expert em inglês, vou colar alguns trechos, mas o texto completo você encontra aqui. Vou falar sobre o segundo texto da página: "'Fortified' Coke, Pepsi, for starving Africans??"

The one and only reliable and sustainable way to reduce undernutrition and where possible to eliminate hunger and starvation, is to give the communities and the countries most affected, the ability to look after themselves. One big first step will be to eliminate foreign debt burdens, most of all of African countries. ‘Band aid’ approaches, including the use of food ‘fortification’ and supplementation, should work in the short-term, but are liable to erode and even destroy the ability of impoverished governments and communities to become food- secure and self-sufficient.
Não há nem o que complementar, pois ele já disse tudo. Não adianta querer resolver o problema da miséria com remendos sociais. E ponto.
Só que, nesse jogo, entram as transnacionais, que se instalam nesses países em desenvolvimento, tais como o nosso, e promovem a febre da suplementação e fortificação de todos os alimentos, inclusive os alimentos infantis. Aliás, eles são os preferidos... Vocês sabiam que tem um leite Ninho que vem escrito na embalagem que ele não é um leite em pó? Ou seja, já virou um produto híbrido, um mutante em forma de alimento que desce goela abaixo das crianças.
‘Premium’ UPPs usually cost more. They are usually promoted using prominent health claims. Such claims are particularly potent when they are addressed to the mothers and carers of children. The general strategy of the transnationals is steadily to replace traditional and established food systems, with ready-to-consume and ready-to-heat products, and in particular snacks. Products with a claimed high nutrient profile, often because ‘fortified’ with synthetic micronutrients, are part of this plan. The vision of the most diversified transnationals is to ‘teach the world to snack’ – a world in which meals and foods (and families) are replaced by UP snacks with their brand, purchased and consumed from the age of weaning and hen by individuals throughout life. Again, if you feel this is exaggerating, access the freely available on-line industry literature.   
No artigo sobre a nova classificação dos alimentos, Carlos Monteiro e seus colaboradores mostram as mudanças do perfil de consumo dos brasileiros ao longo das pesquisas de orçamento familiar já realizadas até a conclusão da pesquisa, ou seja, até a POF de 2002-2003. E as mudanças são mais significativas para esses alimentos ultra processados. Temos que lembrar que programas assistenciais do governo, tais como a unificação dos auxílios no cartão do Bolsa Família, aumentaram o poder de compra dos brasileiros de baixa renda. Porém, isso não determinou uma maior qualidade nos produtos comprados com essa renda adicional. Aí mora o problema. As crianças não são mais desnutridas lá no z score da tabela, mas são mal nutridas com danoninho, Coca Cola e Trakinas.
Por falar em Coca Cola, o texto do artigo deixa bem claro qual é o tema.
O pior é que não é brincadeira. Dois pesquisadores da Universidade da Califórnia propuseram a fortificação de refrigerantes tendo em vista atender a uma necessidade nutricional de crianças desnutridas na África Sub Saariana.


A pergunta é: O que?
Olha, qualquer proposta de fortificação e suplementação de alimentos tem um teor de polêmica, tais como a questão da multimistura e do que aconteceu no Brasil há anos atrás com a doação de leite para grupos em risco nutricional. Mas fortificar um refrigerante?
É sabido que o refrigerante tem valor nutricional nulo, além de ser repleto de fatores que vão em contra a qualquer proposta de torná-lo um alimento recomendável para crianças.
Os 'pesquisadores' justificam sua opinião por conta do baixo custo do refrigerante na África, que custa cerca de 20 a 30 centavos:
The arguments in support of this bizarre proposal are so fragile that commenting on them in detail is perhaps not necessary. One point will do. The case of the West Coast academics depends on their assertion that soft drinks and other bottled products are affordable by African people living in poverty and misery. To ‘prove’ this, they say: ‘Costs of Coca-Cola products are kept low in African markets (~20 - ~30 cents), less than a cost of a newspaper, so that they are affordable for the population’. But people existing virtually without money, or on the equivalent of a US dollar a day or less, do not buy newspapers. Their needs are more fundamental. 
Eu acho que eu nunca vi nada tão bizarro na vida. Quer dizer que podemos acabar com o problema da subnutrição com um alimento de 30 centavos fortificado por uma indústria que esmaga os direitos ambientais das localidades onde se instala e estabelece exploração de recursos e de trabalho de maneira injusta? A Coca Cola e a Pepsi vão salvar a África da fome?
E isso é muito grave:
Worse, if ‘fortified’ branded products made by transnational companies with massive marketing muscle are promoted as helping to save the lives of small children, impoverished parents might indeed be induced to drive their families closer to destitution by making a habit of buying such products. This would be more likely if industry propaganda included supportive statements from pediatric health professionals. Worse yet, if any branded product gains the reputation of being a life-saver, families are liable to remain loyal to the brand, and to any or all available ‘fast’ and ‘junk’ snack and other fatty, sugary or salty ultra-processed products made by the company owning the brand, life-long. The result would be an ‘extra help’ to the obesity pandemic, with all that implies, including intolerable burdens on health services for treatment of serious obesity-related chronic diseases. 
Ou seja, se essas empresas de refrigerantes vem a fazer uma atrocidade dessas, eles tês a melhor campanha de marketing de todos os tempos, pois seriam responsáveis por salvar a vida de milhares de criancinhas desnutridas da África. Só perde para a nova campanha da Coca Cola.  
Isso parece um pouco surreal à primeira vista, mas pode ter certeza que não é. Vivemos numa sociedade em que o imediatismo é o que manda nas relações humanas. Uma solução rápida e instantânea vale muito mais do que um processo sólido de construção de conhecimento. E Paulo Freire que vá plantar batatas...
É claro que a vontade política tem tudo a ver com esse direcionamento a algo que seja efetivo e sustentável. Algo que promova um desenvolvimento digno e duradouro das comunidades por esse mundo afora. Mas as pequenas coisas que podemos fazer ao nível individual, de modo contínuo, ajudam a dizer para quem está no poder que não concordamos com isso, e que uma hora, esse caminho vai ter que mudar.
What the impoverished populations of Africa, Asia and Latin America need, are the means with which to lead a decent life. These include secure local food systems and supplies, access to safe water and adequate sanitation, decently resourced primary health care services, ability to produce and prepare meals from immediate and local resources, universal primary education, and empowered mothers and other caretakers. Substantial reduction of child undernutrition can be achieved in a short period of time with improved income distribution, population and community self-determination, and public investments in public goods such as education, health, social security, water supplies and sanitation (5-7). The persistence of undernutrition is a sure sign of a ‘world order’ that has gone wrong.
Vamos pensar sobre o que consumimos e o que apoiamos. faço esse convite de reflexão especialmente aos profissionais nutricionistas que, pelas minhas lentes embaçadas e de 1,5 de miopia, demonstram-se tão alienadas a assuntos que estão entre suas responsabilidades.
Por falar nisso, nada mais oportuno do que divulgar esse belo evento que será promovido pelo Centro Acadêmico Emílio Ribas da Faculdade Nutrição da USP, sobre a relação entre a indústria alimentícia e as instituições de ensino. Todo estudante de nutrição tem ao menos um exemplinho na sua universidade. Eu tenho uns quinze, hahaha! O mais legal do evento é que ele surgiu por uma mobilização justa dos alunos contra a chuva de propagandistas que davam palestras em sua faculdade. Um grande exemplo de mobilização estudantil numa faculdade de Nutrição. Centro Acadêmico não é só pra fazer choppada. Enfim.

Se você é de São Paulo, divulgue, compareça! 

Data: 5 de maio
Horário: 14h – 17h
Local: Faculdade de Saúde Pública – Auditório João Yunes


Coordenação da mesa: Beatriz Mei (CAER)
Carlos Augusto Monteiro (FSP) - Obesidade x Publicidade de alimentos
Renata Alves Monteiro (UnB e OPSAN) - Regulação da publicidade, DHAA e SAN
Ana Júlia Colameo (IBFAN) - Indústrias, profissionais da saúde e ética
Marina Ferreira Rea (IBFAN) - Evolução das estratégias adotadas no Brasil frente à pressão das indústrias
Fabiana Alves do Nascimento (CAER) – Relação entre indústrias de alimentos e cursos de Nutrição
O evento é gratuito, será transmitido ao vivo via internet e disponibilizado no site www.iptv.usp.br
Não é necessário realizar inscrição prévia.
Para qualquer esclarecimento, entre em contato com:
caemilioribas@yahoo.com.br



2 comentários:

Anônimo disse...

O que você está fazendo para acabar como a fome?

Unknown disse...

Atualmente, estou estudando bastante para que eu não passe fome.
Fora isso, não estou fazendo nada especificamente para acabar com a 'fome de comida'.
A fome é um fenômeno multifatorial, que tem diversos determinantes que podem justificá-la. Mas existem outras fomes que não só aquelas explicadas por uma mera desnutrição proteico calórica. Isso é só a ponta do iceberg. Não sou lá uma pessoa rica de experiências, mas as poucas que tenho, trago bem vivas em minha memória.
Sabe, Anônimo, para o cidadão comum acabar com a fome, há diversas formas. A mais direta, uma doação, em forma de dinheiro ou de alimentos, ou uma atuação numa ONG especializada nisso... Diversas possibilidades.
Eu já fui para este lado mais direto, e é daí que se começa. Mas é aí que se percebe que essa doação pontual é muito insuficiente.
Já tive a oportunidade de certa vez visitar uma instituição filantrópica que abrigava neuropatas abandonados pelas suas famílias. Aquelas crianças estavam em insegurança alimentar, obviamente, por ser uma instituição que vive dessas doações tópicas. E fiquei feliz quando vi que um grupo de amigos e eu conseguimos encher um carrinho de supermercado de suprimentos básicos: leites, farinhas, etc. Mas acontece que essas crianças tinham fome de tudo: de comida, de remédios, de carinho de assistência. Depois é que você percebe que levar dez quilos de leite em pó e cinco quilos de mucilon não vai sanar toda a fome desses seres que foram abusados pela falta de recursos e pela ignorância de seus entes, que as maltratavam fisicamente por serem especiais.
Enfim, é somente com a experiência que crescemos como pessoas.
Mas, voltando a pergunta,mas de uma outra forma, o que podemos fazer para matar a fome de tudo desse povo que está aí fora?
Eu não sei.
E de certa forma, sinto-me bem em não saber, porque me fará buscar a resposta. Acontece que como fenômemo multifatorial, não há como resolver essa questão de maneira simplista. Primeiro, há que se regionalizar. Está falando de fome da África? Está falando de fome no Brasil?
Na África, temos que entrar em tantos pontos políticos, culturais, diplomáticos... Não sei por onde começar, não tenho bagagem para isso.
No Brasil, tem essa fome que habita as sarjetas, a mais correte nos nossos pensamentos, e a fome oculta, que vai matando as pessoas aos poucos. A distribuição de renda já está sendo feita, basta agora criar meios para que as pessoas possam não só ter acesso à informação, como também se apropriar delas. Motivar, engajar, cultivar bons hábitos. Acolher a quem mais precisa. Estamos no caminho certo, Anônimo, não duvide disso.
Espero ter respondido sua pergunta. E espero profundamente que você, implicitamente, não queira dizer que o fato de que eu não faça algo diretamente para acabar a fome no mundo, não me dê o direito de criticar a Coca Cola. Aí são outros quinhentos. Confio que você há de concordar comigo, que não há cabimento em concordar com um tipo de manobra que explore a miséria alheia dessa forma. Deixa de ser nutrição, é moral e ética.
E para concluir um raciocínio que ficou perdido lá em cima, o cidadão comum combate a fome quando cumpre o seu papel. Simples assim. Quando faz o que é correto, quando tenta agir de forma justa. Quando não se corrompe pelas pequenas malandragens do dia-a-dia. Se cada um fizesse seu papel... Se todo médico fizessem bem seu trabalho, se todo nutricionista fizesse bem o seu trabalho, se todo arquiteto fizesse bem seu trabalho... Enfim. Onde não há negligência, há justiça. E acredito que onde há justiça, não há espaço para desequilíbrios tão monstruosos e devastadores quanto a fome.
Um abraço, Anônimo.